O ENIGMA

Felipe Attie
4 min readSep 3, 2023

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Numa noite que parecia uma fusão de expectativa e ansiedade, eu estava sentado na mesa de jantar, na casa dos pais da minha namorada. Era a minha primeira vez, eu estava protagonizando um daqueles momentos definitivos em um relacionamento: conhecendo o sogro e a sogra.

Minhas mãos suavam e meu estômago dava cambalhotas. Pra piorar, desde os 16 anos, eu tenho uma particularidade que faz. meu corpo não funcionar exatamente como o das outras pessoas: sou diabético e preciso injetar insulina para manter as coisas em ordem dentro de mim. Assim, momentos antes do jantar, pedi licença para ir ao banheiro e fazer a aplicação necessária. Jamais pude imaginar que essa simples decisão desencadearia um dos momentos mais enigmáticos da minha vida.

Enquanto me preparava para o procedimento, meus olhos se fixaram na privada. Para minha surpresa, havia ali um fenômeno biológico de proporções épicas, algo que eu jamais avistara em toda a minha vida. Um colossal cocô, um verdadeiro titã fecal, ocupava quase toda a cavidade da privada.

Meu primeiro instinto foi apertar a descarga. Mas como um triste espetáculo de uma tragédia grega, o vaso se recusou a cumprir sua missão. Talvez, aquele amontoado de bosta já estivesse ali há tempo demais e criara um vínculo afetivo com a privada que se recusou a deixá-lo partir. A água começou a subir, as bordas da porcelana estavam prestes a transbordar e minha mente, como sempre, visualizou o pior cenário possível: eu estava a ponto de provocar um desastre sanitário na casa dos pais da minha namorada.

Num momento que desafia a lógica e o bom senso, comecei a orar. Sim, eu, um ateu convicto, clamei aos céus por uma intervenção divina. Pedi que o abominável monstro fecal desaparecesse como se uma varinha mágica higiênica tivesse sido agitada. Mas a vida, inescrutável e muitas vezes cruel, tinha outros planos e uma cascata de merda começou a jorrar diante dos meus olhos.

Naquele instante, percebi que estava perdido. Eu era o protagonista involuntário de um roteiro tão absurdo que absolutamente ninguém acreditaria na minha versão dos fatos. Aos olhos de todos, eu me tornei o autor daquela catástrofe. Minha ausência prolongada no banheiro justificaria essa tese e não me restaria escolhas, senão assumir a autoria de uma merda que não fiz. Saí do banheiro e retornei ao jantar como um condenado cruzando o corredor da morte. Sabia que minha história estava irremediavelmente manchada. Aquela noite seria, sem dúvida, um capítulo inesquecível da minha vida.

Com um nó no estômago, tentei agir de forma natural, mas cada risada, cada garfada, parecia uma façanha impossível de executar enquanto as imagens do banheiro assombravam minha mente. Então, uma decisão começou a se formar nos meus pensamentos, uma saída que parecia a única forma de lidar com a situação. Eu decidi que, se ninguém fosse ao banheiro durante o jantar, eu iria embora sem olhar para trás. Eu desapareceria da vida da minha namorada e me tornaria um canalha cagão que simplesmente evaporou. Essa resolução era uma mistura de autopreservação e desespero. Eu não poderia continuar em um relacionamento carregando o estigma de um namorado que literalmente destruiu o banheiro dos pais da sua namorada. Assim, enquanto todos saboreavam suas refeições, eu me mantinha em alerta, observando cada movimento na direção do banheiro.

Enquanto meu plano de fuga mental tomava forma, a mãe da minha namorada se levantou da mesa e se dirigiu ao banheiro. Meu coração acelerou. Aquele era o ponto de virada. O futuro incerto e cheio de ironia se desenrolava diante de mim. O tempo parecia ter se paralisado. Os segundos pareciam se arrastar. Até que, finalmente, o som da descarga ecoou pelo corredor e minha mente divagou em um misto de alívio e ansiedade. Eu sabia que, em questão de segundos, ela sairia e a verdade seria revelada. Era como esperar o veredicto de um julgamento.

Quando a porta se abriu, notei que ela parecia alheia à situação. Não havia sinais de espanto ou consternação em seu rosto. Ela simplesmente voltou à mesa e continuou a conversa, como se nada tivesse acontecido. Uma parte de mim quis gritar “Ei, você não percebe o que acabou de acontecer lá dentro?”, mas meu autocontrole me impediu.

A sua reação me surpreendeu e lançou um emaranhado de hipóteses na minha cabeça. Talvez a situação não fosse tão terrível quanto eu imaginava. Talvez ela não tivesse percebido o estrago que se desenrolou no banheiro. Talvez, eles fossem tão educados que ela optou por ignorar a situação. Ou, talvez, nada daquilo tivesse acontecido e tudo não passara de fruto da minha imaginação. Nesse caso, ao invés de ter causado um acidente sanitário, eu poderia estar com a sanidade severamente comprometida.

Depois que terminamos a refeição, eu disse adeus para minha namorada sem sequer esperar pela sobremesa. Deixei sua casa para nunca mais voltar. Desapareci completamente de sua vida, cortando todos os laços, exatamente como aquele cocô deveria ter feito quando apertei a descarga.

Mesmo anos depois, o episódio ainda ecoa em minha mente. A incerteza persiste, me fazendo questionar se eu havia fugido de um incidente embaraçoso ou se estava mergulhando em paranoias sem fundamento. A dualidade entre ser um cafajeste causador de problemas ou um mero louco imaginativo continua a me assombrar, transformando aquele momento em um enigma sem solução.

Felipe Attie

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Felipe Attie

Escritor, redator e cartunista. Escrevo uns livros, rabisco uns quadrinhos e tento manter meu filho vivo.