ESTRELINHAS NUDES

Felipe Attie
3 min readAug 30, 2023

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Desde criança, sempre fui movido pela ânsia de superar desafios, especialmente aqueles que eu mesmo propunha. “Duvida eu molhar esse biscoito na água sanitária e beber? Duvida eu comer esse pedaço de bosta de cavalo? Duvida eu lamber o capô do carro até que ele fique impecavelmente limpo?” Minha busca por provar minha ousadia diante dos outros era insaciável. Mas nenhum desafio marcou mais minha vida do que o que eu carinhosamente chamo de “Estrelinhas Nudes”.

Certa noite, eu e meus amigos estávamos sentados na calçada como de costume, quando, possuído pelo Espírito dos Idiotas, eu decidi lançar um desafio a mim mesmo diante todos os que estavam presentes. A vítima escolhida foi uma senhora que passava todas as noites pela nossa rua na volta da igreja. Ela era uma figura frágil, encurvada pelo peso dos anos e que caminhava com passos apressados como se tivesse literalmente fugindo da morte.

“Duvida eu tirar a roupa e dar estrelinhas pelado na frente dessa velha?” perguntei.

Um silêncio sepulcral dominou o ambiente. Meus amigos pareciam incrédulos. Mesmo eles, já acostumados com minhas façanhas idiotas, não só não acreditaram que eu seria capaz de tamanho absurdo, como não acreditaram que eu havia pensado nisso.

Então, um deles quebrou o silêncio, pronunciando a palavra mágica: “Duvido!”

Foi o suficiente. Sem pensar duas vezes, arranquei minhas roupas, corri pelado em direção à velha e comecei minha apresentação.

Como se não bastasse a situação ser completamente surreal, a sua reação foi ainda mais absurda. Enquanto eu me contorcia no ar, ela começou a sorrir e aplaudir, como se estivesse assistindo a um espetáculo circense. Meus amigos imediatamente começaram a gargalhar, enquanto eu permaneci incrédulo. Nenhum de nós, muito menos eu, esperava tal reação. Um grito de espanto acompanhado de alguns desaforos estava dentro do planejado. Mas aplausos acompanhados de uma risadinha maliciosa era algo surreal até pra mim que, no mesmo instante, vesti minhas roupas e encerrei meu espetáculo envergonhado.

A partir daquele momento, uma tradição nasceu. Todas as noites, quando voltava da igreja, logo assim que sua figura enrugada e carcomida pelo tempo surgia na esquina, eu e meus amigos já sabíamos o que estava por vir: ela me presenteava com um enorme saco de pipoca com bacon. Quando eu não estava por perto, ela acenava para um dos meus amigos e lhe entregava o presente para que fosse repassado para mim. A “Vó da Pipoca”, como a batizamos carinhosamente, se tornou um personagem mítico na nossa vida.

Foi assim durante boa parte da nossa infância. Nunca soubemos o que a motivou a iniciar essa tradição e o fato de ela nunca ter pronunciado uma única palavra, tornava tudo ainda mais enigmático. A nossa relação era mantida através do silêncio, quebrado apenas pelo amassar do saco de pipocas sendo passado para as minhas mãos. Assim, a verdade permaneceu trancada em seu peito enrugado, como um mistério guardado a sete chaves.

Até hoje, sempre que me vejo diante de uma porção de pipocas com bacon, eu me lembro dela: a Vó da Pipoca. Então, volto a questionar o que a motivava em seu benevolente ritual. Talvez fosse a saudade dos tempos passados, uma lembrança de quando ela própria era jovem e sentia prazer ao se despir. Talvez eu lembrasse um de seus filhos ou netos. Talvez aquelas pipocas fossem um símbolo de redenção, uma tentativa de reparar os erros do passado. Ou talvez fosse apenas o desejo de oferecer a alguém mais jovem um pouco do afeto que o mundo tantas vezes lhe negou.

Felipe Attie

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Felipe Attie

Escritor, redator e cartunista. Escrevo uns livros, rabisco uns quadrinhos e tento manter meu filho vivo.